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Por Guilherme Trindade
A liberdade religiosa é um dos pilares de qualquer democracia. No entanto, dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania revelam um cenário preocupante: em 2024, o Brasil registrou 2.472 denúncias de intolerância religiosa, isso significa um aumento de 66,8% em relação às 1.481 denúncias feitas em 2023. Em Santa Cruz do Sul, a situação também chama atenção: a cidade tem sido palco de uma escalada de casos de intolerância, especialmente contra religiões de matriz africana.
Episódios de violência simbólica e física, como ataques a terreiros, ameaças a lideranças espirituais e interrupções ilegais de rituais, tornaram-se parte da rotina de diversas comunidades da região. Os relatos, antes abafados ou desacreditados, vieram à tona em uma audiência pública realizada na Câmara de Vereadores em abril de 2025, escancarando não apenas a violência em si, mas também a omissão das instituições públicas em lidar com o problema.

A proposta de criação da Delegacia de Combate à Intolerância Religiosa (DECRIN) surgiu como resposta a esse cenário. Apresentada pela deputada estadual Luciana Genro (PSOL), a iniciativa se inspira no modelo já existente em Porto Alegre desde 2020, que atua com equipe especializada no combate a crimes de racismo, LGBTfobia e intolerância religiosa, oferecendo, inclusive, apoio psicossocial às vítimas. A ideia é trazer essa estrutura para o interior, mais precisamente para Santa Cruz do Sul, onde os casos vêm se acumulando e as vítimas relatam desamparo constante por parte da Brigada Militar, Guarda Municipal e Ministério Público.

Para muitos, a DECRIN representa mais do que uma nova repartição pública, é a chance de transformar o modo como o Estado responde a violências que, historicamente, foram invisibilizadas. A ialorixá Jenifer Gonçalves, vítima de um ataque durante um ritual em seu terreiro, relatou a dor de ser ignorada pelas instituições. “Fomos atacados com pedras e ameaçados de morte. Liguei para a Brigada, mas ninguém apareceu. Fiz boletim de ocorrência, mas nunca fui chamada para prestar depoimento. Parece que nossa fé não importa, que nossa dor não conta”.
O líder comunitário do bairro Margarida e também religioso Paulo André Souza, também participou da audiência e defendeu a urgência de instalação da DECRIN em Santa Cruz. Ele ressalta que, sem estrutura, a proposta corre o risco de virar apenas uma peça publicitária. “Não basta anunciar a criação da delegacia. Ela precisa ter sede, equipe qualificada e orçamento. Senão, será apenas marketing político com a dor alheia”. Segundo ele, as comunidades de matriz africana já estão cansadas de promessas vazias e exigem medidas concretas que assegurem não apenas investigação, mas acolhimento e respeito.

Apesar da comoção causada pela audiência e da repercussão positiva da proposta, até o momento não há garantias sobre a viabilidade orçamentária da nova delegacia. A Secretaria Estadual de Segurança Pública, procurada pela reportagem, confirmou que a proposta está em estudo, mas não informou prazos nem recursos destinados à iniciativa. Também não há confirmação sobre onde funcionaria a unidade e quantos agentes seriam designados. A única certeza é que, se a proposta for adiante, precisará articular-se com o Ministério Público, o Poder Judiciário e as polícias locais para garantir que a atuação não fique limitada à formalidade dos registros, mas se traduza em respostas rápidas, investigações eficazes e apoio concreto às vítimas.
A possível criação da DECRIN, expõe ainda, uma ferida mais profunda: o silêncio institucional diante das denúncias. Um antigo membro da diretoria do Conselho Municipal do Povo de Terreiro de Santa Cruz do Sul relata que, ao buscarem ajuda, vítimas escutam frases como “isso não é crime”, “é briga de vizinho” ou até mesmo “o barulho do tambor incomoda a comunidade”. Esses discursos revelam não apenas preconceito, mas uma estrutura de poder que normaliza o apagamento religioso e cultural de comunidades inteiras.

Para o advogado criminalista Márcio Corrêa, é fundamental que a criação da delegacia não ocorra de forma verticalizada. Segundo ele, “a implantação das delegacias exige cuidados rigorosos para que essas estruturas não reproduzam as mesmas violências institucionais que pretendem combater. Para isso, é fundamental uma capacitação contínua e crítica dos agentes, que devem compreender o fenômeno da intolerância religiosa para além do formalismo legal, reconhecendo principalmente seus aspectos históricos, culturais e raciais”. Márcio também destacou que a principal dificuldade para a criação dessas delegacias será de ordem política: “Um dos principais obstáculos é a falta de priorização política, já que a criação de delegacias especializadas depende do Poder Executivo, que muitas vezes direciona recursos e atenção para áreas com maior apelo eleitoral ou midiático, deixando os direitos humanos em segundo plano”.
A delegacia proposta teria como escopo o atendimento de casos de intolerância religiosa com enfoque em direitos humanos, incluindo o acolhimento com profissionais capacitados, como psicólogos e assistentes sociais para facilitar o diálogo com as vítimas. A expectativa é que essa nova estrutura não apenas investigue crimes, mas atue na prevenção, na educação e na articulação com políticas públicas mais amplas de valorização da diversidade religiosa. Ainda assim, sem previsão clara de recursos e com a proximidade das eleições, crescem os receios de que a pauta seja instrumentalizada politicamente, sem gerar mudanças reais.
Enquanto o projeto tramita, a realidade segue inalterada para quem cultua sua fé nos bairros afastados da cidade. Mãe Jenifer, que agora evita realizar cerimônias à noite, diz que o medo passou a fazer parte de sua rotina. “A cada batuque, olho para o portão esperando alguém invadir. E o pior é saber que, se isso acontecer, ninguém vai nos defender”, comenta ela. Ainda assim, ela segue rezando: “a fé é a única coisa que eles não conseguiram tirar da gente”.

A criação da DECRIN em Santa Cruz do Sul simboliza um embate maior entre o direito à liberdade religiosa e a resistência histórica de um Estado que, por vezes, falha em proteger seus próprios cidadãos. Resta saber se, desta vez, a promessa se converterá em política pública efetiva ou se continuará como mais um capítulo de silêncio diante da intolerância.

Por Guilherme Trindade
Estudante de Jornalismo da Unisc